Teoria de números/Equações diofantinas

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Neste capítulo serão estudados certos problemas cuja solução envolve conceitos da teoria de números que foram tratados nos capítulos anteriores.

Considere o seguinte problema:

Se existem notas de 2 e de 5 reais, quais são os valores que podem ser obtidos combinando algumas dessas notas?

Matematicamente, o que se quer saber é:

Quais os valores de  para os quais a solução  possui alguma solução inteira?

Em geral, as equações que surgem no contexto da teoria de números devem ser resolvidas no conjunto dos números inteiros. Este tipo de equação é conhecido como equação diofantina.

As equações diofantinas lineares[editar | editar código-fonte]

A equação que surgiu do exemplo apresentado no início do capítulo é apenas um caso particular da seguinte: Aqui, os inteiros e são fixados.

Quando é que tal equação possui solução?

O próximo teorema responde exatamente essa pergunta.

Teorema

Dados existem tais que se, e somente se, Além disso, se é solução, então todas as soluções são da forma: e onde e

Demonstração
Primeiramente, observe que se é uma solução, então (pela linearidade da divisibilidade).

Reciprocamente, se então

Mas pelo teorema de Bézout, existem inteiros tais que Logo, multiplicando cada membro por tem-se:

ou seja, basta tomar e e será uma solução.


Resta determinar a forma geral de todas as soluções.

Se for uma solução conhecida, qualquer outra solução satizfaz:

Então ou seja,

Tomando é possível escrever

Donde:

Claramente e

Logo

ou seja, existe tal que

Portanto,

Usando essa expressão em

resulta

Disto se conclui que

Assim como acontece em problemas que envolvem equações diferenciais, para determinar o conjunto solução de uma equação diofantina, encontra-se primeiramente uma solução particular, e combina-se a mesma com a solução da equação homogênea (no caso, )

Agora é possível resolver o problema proposto no início.

Aplicação[editar | editar código-fonte]

Será que existem números inteiros que verificam

Conforme o teorema indica, para que exista uma solução (e portanto infinitas) é preciso que

Pelo algoritmo de Euclides obtem-se além de Multiplicando ambos os membros por segue que:

Assim, as demais soluções são da forma:

No contexto em que o problema foi colocado, é exigido que as soluções não sejam números negativos. Disto seguem as seguintes restrições:

que são equivalentes a

Para que exista algum valor inteiro nesse intervalo, é suficiente que ou seja,

Note que a condição anterior é suficiente, mas não necessária, pois para alguns valores de também há soluções:

A conclusão final é que, utilizando apenas notas de e de é possível obter qualquer valor inteiro maior que ou igual a

Interpretação geométrica[editar | editar código-fonte]

Sabe-se que o conjunto dos pontos (com coordenadas reais) que verificam a equação é representado por uma reta sobre o plano cartesiano. Então as soluções da equação diofantina são representadas pelos pontos da reta que possuem ambas as coordenadas inteiras.


Este módulo tem a seguinte tarefa pendente: Incluir figura mostrando uma reta que passa por vários pontos de coordenadas inteiras, e cujo ponto mais próximo da origem (e com coordenadas inteiras) é destacado.

Diferença de quadrados[editar | editar código-fonte]

Um outro problema que pode ser tratado com as ferramentas desenvolvidas até agora é a busca de soluções inteiras para a seguinte equação:

Buscar tais soluções significa determinar se existe algum inteiro que pode ser escrito como soma de dois quadrados perfeitos. Se a resposta for afirmativa, será interessante saber exatamente quais são os números inteiros que são soma de quadrados.

Estes são alguns exemplos desse tipo de problema:

  • tem soluções inteiras?
  • tem soluções inteiras?

Para poder entender a estratégia para a resolução desse tipo de problema, considere que a segunda equação tenha alguma solução

O que se pode afirmar sobre esses dois números inteiros?

Primeiramente, deve valer ou seja, a soma e a diferença das soluções devem ser divisores de Sabe-se, por exemplo, que Será que existem inteiros tais que

Por inspeção, percebe-se que e servem, logo

E quanto ao outro problema?

É possível encontrar um par de divisores de (por exemplo, e ) tais que um seja a soma, e outro a diferença das soluções?

Observe:

Divisores de

Você é capaz de encontrar alguma linha dessa tabela contendo a soma e a diferença de dois números inteiros? Justifique.

Em vez de continuar tratando o problema baseando-se em exemplos particulares, considere que existem satisfazeno a equação em sua forma geral:

Conforme anteriormente, conclui-se que, para alguma escolha de tais que tem-se e ou seja, para tais divisores de existe uma solução para o sistema:

Equivalentemente, tais inteiros são também solução do sistema:

Se você interpretar essas equações adequadamente, concluirá que devem ter a mesma paridade (ser ambos pares ou ambos ímpares). De fato, se um deles for par e o outro for ímpar, sua soma será um número ímpar, e consequentemente não poderá ser escrita como para nenhum valor inteiro

Na verdade, com pouca ou nenhuma argumentação extra, prova-se a validade do seguinte teorema

Teorema[editar | editar código-fonte]

Teorema

Um número inteiro pode ser escrito como a diferença de dois quadrados perfeitos, se e somente se é ímpar ou múltiplo de

Demonstração
A argumentação precedente mostrou que se então sendo que têm a mesma paridade.

Reciprocamente, se têm a mesma paridade, então sua soma e sua diferença são números pares, significando que o sistema

possui uma solução. Mas o conjunto solução deste sistema coincide com o de:

Logo,

Para finalizar a demonstração, note que as paridades de são iguais se, e somente se:

  1. são ímpares ou
  2. são pares

Mas são ímpares se, e somente se, é ímpar. Além disso, para que sejam pares, é necessário e suficiente que e Neste caso, ou seja, é múltiplo de

Uma forma direta de obter a representação de como diferença de quadrados é a seguinte:

  • Se é múltiplo de
Nessa situação,
  • Se é ímpar.
Nesse caso,

Exemplo[editar | editar código-fonte]

Com esse resultado, conclúi-se que não há solução para o problema dado em um exemplo anterior:

De fato, não é ímpar e nem múltiplo de

Por outro lado, usando a fórmula anterior, fica fácil resolver:

Como segue que

Ternos pitagóricos[editar | editar código-fonte]

Um pouco de história
Bust of Pythagoras of Samos in the Capitoline Museums, Rome
Bust of Pythagoras of Samos in the Capitoline Museums, Rome

Pitágoras foi um matemático e filósofo grego nascido por volta de 570 a.C., na ilha de Samos. Ele é creditado pela demonstração de uma importante relação entre os lados de um triangulo retângulo, hoje conhecida como o teorema de Pitágoras, cujo enunciado é geralmente resumido da seguinte forma:

O quadrado sobre a hipotenusa é igual à soma dos quadrados sobre os outros dois lados.

Um terno pitagórico é uma tripla de números inteiros que satisfazem a equação:

Por exemplo, então é um terno pitagórico. Obviamente, também é um terno pitagórico, mas este último caso é trivial e sem interesse, portanto não será considerado na discussão que segue. O objetivo dessa seção é determinar em que circunstâncias a equação tem solução não trivial (não todos nulos).

É possível simplificar a investigação, considerando somento o caso em que são primos entre si. De fato, se então:

Na verdade, se for uma solução, então o máximo divisor comum destes números verifica as seguintes igualdades:

Justificativa
Fica a cargo do leitor justificar este fato. Sinta-se livre para melhorar a qualidade deste texto, incluindo a justificativa neste módulo.

Em particular, não pode haver não podem ser ambos pares.

Por outro lado, os inteiros também não podem ser ambos ímpares.

De fato, se assim ocorresse, valeria:
  • para algum inteiro
  • para algum inteiro
Deste modo, elevando cada um destes números ao quadrado, resultaria:
  • e
Donde:
Ou seja, a soma dos quadrados de e seria par, mas não pertenceria a
No entanto, sempre que é par, tem-se par e consequentemente
Logo, quando são ambos ímpares, a soma de seus quadrados não pode ser um quadrado perfeito.

Segue que dos inteiros um é ímpar e outro é par. Sem perda de generalidade, pode-se supor que é par e é ímpar.

Uma outra forma de escrever a equação original é:

A partir daí, pode-se deduzir outras informações sobre os inteiros que a satisfazem. Por exemplo, pois:

A segunda implicação vale pois Logo,

Mas não pode ocorrer senão:

e como é par, também seria, coisa que não é possível já que

Assim, o quadrado perfeito é o produto de dois números primos entre si. Disso decorre que cada um deles deve ser um quadrado perfeito (veja o exercício 1), ou seja:

que equivale a:

Portanto, quando três números inteiros primos entre si (e não todos nulos) satizfazem a equação:

devem existir inteiros ímpares e primos entre si, tais que e:

Claramente, para quaisquer inteiros os valores de obtidos pelas fórmulas acima são ternos pitagóricos, pois:

Exemplos[editar | editar código-fonte]

Pode-se obter facilmente uma dezena de ternos pitagóricos utilizando as fórmulas:

Alguns deles são listados na tabela a seguir:

parâmetros ternos pitagóricos
3 1 3 4 5
5 1 5 12 13
7 1 7 24 25
9 1 9 40 41
5 3 15 8 17
7 3 21 20 29

Note ainda que toda solução é da forma:

onde:

Observações[editar | editar código-fonte]

Wikipedia
Wikipedia
A Wikipédia tem mais sobre este assunto:
Terno pitagórico

A fórmula clássica para a obtenção de ternos pitagóricos é conhecida como Fórmula de Euclides, por ter sido apresentada nos Elementos de Euclides é a seguinte:

Tal fórmula é equivalente àquela deduzida anteriormente, como se pode verificar facilmente:

Demonstração
De fato, foi mostrado que se com então não têm a mesma paridade. Adimitindo que seja ímpar e que seja par, conclui-se que é impar e portanto:

Mas é verdade que pois a soma e a diferença de dois números ímpares são números pares. Donde

que é equivalente a:

sendo que

Disso se conclui também que:

Exercícios[editar | editar código-fonte]

  1. Mostre que se com primos entre si, então são quadrados perfeitos.