Laboratório de Redes/Diferenças da colaboração em blogs e wikis
As formas da ação recíproca variam amplamente no que diz respeito ao rigor e à rigidez que porventura venham a adquirir. Formas mais firmes remetem a instituições de grande extensão, durabilidade e visibilidade que pouco se abalam no decorrer das dinâmicas que as mantêm vivas. Diferentemente de outras formas que são mais efêmeras e maleáveis, que se dão entre indivíduo e indivíduo e que se estabelecem e se desfazem em um ir e vir contínuo. É importante destacar que mesmo as formas mais duráveis se encontram infiltradas por outras mais frouxas que exigem permanente acordo e que são mutáveis. A coexistência entre o mais rígido e o mais flexível não impede, no entanto, uma diferenciação que se dá no conjunto das interações e que é marcada pela proeminência de um tipo de forma ou de outro. A prevalência de formas flexíveis, susceptíveis de transformação, confere às interações que se passam nos blogs uma maleabilidade que as redes wiki não podem oferecer, uma vez que se servem de formas mais rígidas. Tem-se com isso que o rigor das normas que operam entre os integrantes da colaboração wiki condiciona um tipo de enredamento muito diverso do que se dá entre os blogs, onde sempre se pode encontrar uma nova forma de interação, onde as regras podem ser constantemente revistas. Semelhante diferença pode ser encontrada nos aspectos macroscópicos das redes, cujas morfologias assumem tendências bastante distintas.
A cooperação entre os hackers a partir da abertura do código-fonte ajuda a evidenciar uma das tendências assumidas por redes que emergem da « simbiose » entre indivíduos e seus computadores: a constituição de redes densas, ou seja, onde a maior parte dos atores se conhece e interage entre si. Movimento seminal para o desenvolvimento da Internet, a busca por desempenho e excelência tecnológica que agencia os hackers em relações de compartilhamento é fortemente sustentada por um tipo de meritocracia que conjuga o princípio da liberdade individual com a reputação entre os pares. O modelo wiki de colaboração segue essa tendência e promove ambientes onde a idéia de conteúdo aberto — por analogia ao código-fonte aberto — supõe que artigos, imagens, vídeos ou áudios sejam livremente utilizados, distribuídos e modificados por qualquer utilizador da ferramenta. No entanto, a liberdade para manipular um determinado conteúdo está associada à necessidade de conhecer os pares e de ser por eles conhecido. Ou seja, o reconhecimento individual pelo coletivo condiciona posições mais ou menos privilegiadas de ação. Freqüência, tempo de casa e obediência às normas de convivência são fatores chave para exercer o manejo dos conteúdos, em uma curiosa combinação entre o exercício da liberdade individual e a integração ativa a um coletivo onde as posições hierárquicas e recíprocas são bem definidas.
A autoridade se exerce em nome da coletividade e desfruta de prerrogativas e de credibilidade axiomáticas. Diferentemente das redes em ambiente blog onde a autoridade remete a características estritamente pessoais, singulares, o que fomenta ligações voltadas para o caráter único daqueles que se encontram em situação de superioridade ou de liderança. Também a vigilância e o controle das ações no modelo wiki são tributários de uma rede mais viscosa que gera padrões de comportamento claramente definidos e facilmente monitoráveis. Por sua vez, para que ocorra qualquer tipo de fiscalização entre os blogs há que se acompanhar uma trajetória singular. Essas diferenças nas formas de interação estão comprometidas com as diferenças topológicas. A alta viscosidade das redes mais densas condiciona fluxos e trocas que estabelecem uma certa precedência do coletivo sobre a ação individual. Muito distintas são as interações processadas em redes esparsamente conectadas que se ramificam através de interações esporádicas e intermitentes, como ocorre com os blogs. A distensão dos laços em redes ramificadas amplia as margens da ação individual.
O fato é que, incitados por motivações e finalidades variadas a fazer uso das ferramentas tecnológicas, os sujeitos se entrelaçam em formas de colaboração que constituem campos de tensão tão diversos quanto são diversas as forças que engendram tais redes. Começa que wikis são como agregadores — eles agregam pessoas na mesma página pelo interesse comum em algum conteúdo —, e blogs são espécies de desagregadores, eles distribuem a interação entre pessoas que estão espalhadas no espaço e não necessariamente se encontram congregadas no mesmo momento. Os wikis são marcados pela anonimidade dos autores, da autoria. Trata-se do efeito prático da produção coletiva, em que cada um pode modificar o conteúdo previamente existente, previamente construído por um ou mais de um dos membros de um coletivo qualquer, num processo em que a autoria vai gradualmente desaparecendo como propriedade de um nome em benefício do coletivo. No lugar do sujeito, somente « agenciamentos coletivos de enunciação » se fazem notar. Já os blogs são marcados pela autoria e o tema ou a questão inicialmente tratada é definida pelo autor. De modo que os wiki se consagram preferencialmente à objetividade dos assuntos tratados pelos que neles se envolvem, enquanto os blogs refletem de preferência a subjetividade de seus autores, assim como as de seus leitores. Uma coisa é certa: num blog qualquer indivíduo pode ter uma opinião sobre qualquer assunto, tema ou questão. Pode expressá-la com toda liberdade e com a ênfase que mais lhe aprouver.
A colaboração aparece como uma « congruência de trajetórias », um entrelaçamento de percursos subjetivos que adquire sentido pelas frequentações, solidariedades e conflitos que emergem de interações onde há sempre um ato pelo qual o « eu » se coloca. Na produção de um texto sobre determinado tema/assunto na Wikipédia, por exemplo, após a primeira redação, um coletivo se apropria do conteúdo e faz seu o problema contido no texto, à medida que o objeto dele vai sendo recortado, definido, explorado, aprofundado; nesse mesmo processo, uma forma peculiar de objetividade vai sendo engendrada em relação ao tópico em elaboração ou que já adquiriu uma certa estabilidade, a objetividade distribuída. Aqui também os efeitos de rede desempenham um papel relevante: eles fornecem uma condição de possibilidade dessa forma de objetividade. O compromisso dos colaboradores é, em conseqüência, bastante diferente nos processos de produção de conhecimento que ocorrem em blogs e wikis.
Agenciamentos wiki tendem a delimitar objetividades — o tema ou o assunto — em torno das quais os indivíduos se agregam em esforços paralelos e concorrenciais. De modo que as fronteiras da questão coletiva fazem bloco com outras que lhes são similares em uma dinâmica endogênica que remete de um tema/assunto a outro. Por sua vez, as redes blog são prioritariamente dispersivas. O utilizador da ferramenta pode partir de um ponto qualquer em contínuo distanciamento, sem contenção de limites. Regência da subjetividade, cujas questões — familiares, íntimas, pessoais — tanto podem remeter a outras que lhes são análogas, quanto àquelas que lhes são inteiramente estrangeiras. A fluidez da dinâmica blog possibilita sempre a abertura de um caminho que nunca fora traçado, a conexão entre pontos remotos e heterogêneos, o que força as fronteiras à cedência.
É notável a maneira como os blogs, originalmente dedicados à publicação da vida íntima, foram infiltrados pela prática jornalística, quase sempre opinativa, com extrema agilidade e realizaram, assim, uma interpenetração entre o depoimento subjetivo e o relato objetivo. A flexibilização das formas provocada por conexões dessa ordem alcança hoje as mais diversas atividades que são realizadas na Internet. Já se tornou comum encontrar em sites institucionais um link que conduz a um blog. Assim, basta um breve movimento do bloco mouse/cursor para se transpor a linha que separa a objetividade da ordem da tonalidade subjetiva dos posts. E tais transposições operam também uma supressão dos espaços que separam os interesses coletivos dos individuais, as injunções subjetivas dos produtos objetivados da ação. Nada poderia ser tão fiel ao princípio da conectividade quanto a proliferação de agenciamentos capazes de provocar uma mescla entre instâncias que há muito tempo são marcadas por diferenças inconciliáveis. Surpreendente é que esse forçar das fronteiras não corresponde ao aparecimento de nenhum tipo de continuidade no sentido de uma homogeneização ou mesmo de uma conciliação. As diferenças permanecem, geram atrito e podem ser notadas em aspectos de toda natureza, como foi visto. O que fica patente, por ora, é a vigência de processos que não fixam limites espaciais ou temporais e assim desafiam nossa capacidade de apreensão. [1]