Culinária gaúcha/O Boi
O animal vacum fornece alimentos e permanece vivo. A vaca dá o leite e o touro dá os testículos. O leite o gaúcho toma puro, ou com café, ou com camargo, ou com açúcar e canela, ou quente, com gemada, ou com chá, ou com mate, como manteiga, ou queijo, ou ricota - enfim, de várias maneiras. Os testículos extraídos do jovem touro na castração (e às vezes de touros veteranos, que viram "torunos") são assados nas brasas, ou cozidos de várias maneiras, à escabeche, ou como recheio de pastel.
Quando é abatida uma vaca prenha, o terneiro que está dentro dela, conforme a idade, não tem ainda couro ou já tem couro formado. Esse animalzinho é chamado vitela, o que é um erro - vitela é o terneiro recém-nascido, até um mês. Quando o terneiro ainda não tem couro, apenas uma gelatina, ele é extraído, carneado (eviscerado) e se presta a uma porção de pratos: ensopada, a escabeche, enfarofado. Quando já tem couro, deve ser coureado (a pele de nonato é muito apreciada para vários objetos de artesanato) e aí pode servir até para churrascos, assados, carne assada, frita, recheado com sarrabulho, entre outros.
Então carneia-se a rês. Claro que o aproveitamento das partes do animal mudou bastante desde o tempo do sal até agora, tempos de "freezer". Antes, o que não se comia nos três primeiros dias da carneação, tinha que ser salgado, para durar.
Dois, no máximo três homens (sempre homens, nunca se teve notícia de mulher carneando) tomam parte da lida. Um pode ser guri, ou um velho e até algum desses loucos mansos que vivem pelos galpões das estâncias, para pequenos serviços simples. Vai sempre um laço nas aspas e outro no pé do lado que se vai sangrar, para evitar coice. A rês morre sempre no potreirinho da frente, perto "das casas", em lugar onde há árvore e cerca. E é sangrado de pé, para o sangue escorrer bem e deixar a carne limpa, sem a cor escura, sanguinolenta, feia. O animal é sangrado com uma faca larga, um pontaço na jugular, perto do tronco do pescoço. Como a jugular não é saliente, exige-se perícia e experiência do sangrador. O sangue jorra abundante e vai para o chão onde será lambido pelos cachorros. Não se aproveita o sangue do vacum pra nada. Normalmente se carneia pela manhã, bem cedo e ao fim da tarde, as reses que estiverem no potreiro, virão "chorar" doloridamente no local do sangramento, cheirando a terra e berrando de um jeito muito triste.
O animal vacila sobre as patas e cai, de joelhos. As últimas golfadas de sangue saltam quando a rês está deitada, com a cachorrada "acoando" em volta. Deve-se tomar cuidado com o último coice da vaca sangrada, ao tirar o laço.
Morto o vacum e afiadas as facas dos carneadores, risca-se rapidamente o couro, desde o beiço de baixo até o sabugo da cola. Depois, riscam-se as mãos e as patas, por dentro. Aí tira-se o couro da cabeça, sem as orelhas, com faca de ponta. Então, "apara-se" a rês morta, equilibrando-a meio de lado, com as patas para cima. Usa-se, para "aparar", a própria cabeça do animal, virada para a paleta. Se tiver aspas, melhor. O couro, no chão, é ajeitado para não deixar sujar a carne da cabeça, em contato direto com a terra. Tira-se o couro com faca de folha larga e ponta meio arredondada, o quarto que está para cima e logo a paleta que está para cima. Para tirar o couro nas costelas, usa-se o canzil (peça de canga, com dentes, que faz par com outro canzil. No meio deles o boi carreteiro enfia a cabeça e os dois canzis são ligados entre si pela brocha, formando um verdadeiro tronco que prende-se o boi para trás da cabeça). Se não houver um canzil à mão, pode-se usar o cabo da faca, mesmo: puxa-se bem o couro, enrolando-o na mão à medida que sai e soqueando o local onde o couro se liga ao matambre com o canzil, para soltá-lo mais facilmente.
A rês está toda coureada, mas de um lado só.
A seguir a cabeça é distorcida, "desparando-se" a rês e tudo é feito de novo, do outro lado do animal. Portanto, a rês está coureada. Só falta desprender o couro da cola, o que é feito com um tirão seco, com o canzil atravessado. O couro, durante toda a carneação, é mantido bem esticado embaixo da carcaça, para receber, sem permitir sujeira, as partes do animal. Depois será estaqueado (no chão, ou no vento, conforme o uso de cada região e conforme vá servir para tranças ou para venda às barracas de "frutos do País") para secar sem dobrar as rugas.
A seguir tira-se o matambre, manta fibrosa e larga, com a qual se farão quantos pratos: assado aberto (matambre de carona), enrolado (cozido antes de assar), com tempero. Muito carneador, ao tirar o matambre, já bate duas ou três vezes com ele na barriga da carcaça, para que não fique duro.
Cortam-se à faca as quatro patas, os mocotós, com cascos e tudo. Mais tarde, as patas serão fervidas, para soltar os cascos (servem para artesanato), o que é feito batendo-se com as patas (pegadas com um pano, porque estão fervendo) num moirão, ou numa quina do galpão. As partes de mão e pés servirão para fazer sopa de mocotó e as canelas, fervidas, fornecem óleo de mocotó, que é para o cabelo, ou simplesmente gordura para o feijão. (O óleo de mocotó é eficaz, aplicado todas as noites sobre as pálpebras, para eliminar cataratas, também).
O peito da rês é maciço, volumoso. Chama-se a essa parte "maçã do peito". Ela, à faca, é "rachada", dividida, até o osso (externo). Saiu uma carne rija, com granito, que é uma gordura muito sólida. Essa carne do peito, com metade de granito, serve para tudo: para churrasco, para sopa, para feijão, para carne de panela, para guisado, para charquear, cada prato melhor que o outro.
Chega é hora de "riscar o lombo". Começa o processo com um talho fundo em cima do pescoço, o talho que, ao atingir o espinhaço, divide-se em dois, em de cada lado, até o osso, terminando ambos praticamente na picanha do animal. Sai a carne do lado da cara, com a "Coleira". Vai sair agora a "manta do pescoço", que começa pelo lado da cara e vai até o tronco do pescoço, aí incluindo o "sangrador". O "sangrador" é duro mas gostosíssimo, churrasco do patrão - a não ser que o patrão presenteie com ele o chefe dos carneadores, o que é uma grande homenagem. O "sangrador" é uma porção de carne espessa, com palmo e meio de diâmetro, mais ou menos, ao redor do ponto onde o animal foi sangrado. Vira-se a rês e se tira a outra manta do pescoço, pelo outro lado. A manta do pescoço dá um ótimo churrasco, mas é dura. Também é usada para charque.
A paleta, já sem a pata, sai em seguida. É pendurada em lugar próprio, ou mesmo numa cerca, ou numa árvore. Dá uma rica de uma manta, para assar ou charquear. Depois, é a vez do quarto. O quarto, à tarde, será trabalhado em salgadeira (uma grande mesa especial, de plano inclinado, para a salga da carne, com uma extermidade que se afunila, por onde escorre o líquido sanguinolento da carne salgada para um cocho, no rés do chão, normalmente em forma de barco e de madeira. Hoje, com o "freezer", a salgadeira perdeu muito de sua importância na vida da estância). Do quarto se tira a polpa (coxão ou colchão de dentro), de onde se tira o tatu, os lagartos do quarto (músculos fortes, carne que se usa mais para molhos e sopas), o coxão ou colchão duro (de fora), o patinho (redondo e magro, de onde se tiram bifes deliciosos), o alcatre, a picanha, com o bispo, ou chapéu de bispo. A picanha dá o churrasco preferido por mulheres e por velhos, por ser muito tenro e com um friso de gordura.
Antes de "freezer", o quarto dava também uma grande manta para charquear e nesse tempo era uso entre vizinhos - quem carneasse mandava a polpa para o outro, porque a carne verde (fresca) não durava mais de três dias. Assim, quando só tivesse charque, receberia do vizinho outra polpa, comendo carne verde, outra vez.
Então é hora de se virar o caroço e repetir tudo, do outro lado. O que sobra é o "arrastado", o tronco da rês carneada, sem os membros. Trabalha-se nos costilhares, de um e outro lado.
Primeiro, tira-se a manta da costela, grossa ou fina, conforme a destinação.
É feito um furo ao lado da última costela minga (flutuante) por onde um carneador mete a mão, puxando para abrir. Com um machado outro carneador vai separando as extremidades superiores das costelas do espinhaço e - a faca - corta de cima abaixo, só respeitando a barrigueira, de onde sai uma manta chamada, claro, de manta da barrigueira. Vira-se a rês, tira-se a manta (quando se vão assar as costelas, a manta não é tirada muito grossa. A manta das costelas dá o melhor charque) e liberam-se as costelas, como do lado anterior. A manta da barrigueira, que se libera a seguir, só serve, mesmo para fazer charque. No tempo das salgadeiras, essa manta, já salgada, cobria a pilha formada pelas demais, por ser muito grande e oferecer uma superfície externa muito forte e resistente às moscas.
Em continuação, tira-se a "penca dos miúdos", as "fissuras", no Litoral Mostardas) e as "fressuras" ou "fussuras" na Fronteira Oeste. Vem junto com a goela o fígado, o coração e os bofes. A goela hoje não se aproveita para nada, mas já serviu para cabo de mango (retovado) e até com o fôrma de grandes velas de sebo. O fígado dá excelentes bifes, depois de um banho de leite, durante uma noite. Alguns carneadores, assim que abrem a rês, tiram o fel, com o mínimo de cuidado. Um fel furado estraga uma carne inteira. O coração se come de mil jeitos, mas os bofes são fervidos e, embora dêem um excelente guisadinho, só alguém muito pobre para comer bofe: o normal é dar os bofes para a cachorrada.
Então a rinhada (os rins) saem com sebo e tudo. Dão boa comida, no espeto ou na panela. Atrás dos rins estão os dois filés-mignon, que dão os mais apreciados bifes do mundo. A passarinha (pâncreas)está grudado no bucho. A rede de sebo que recobre o bucho e as tripas é retirada e servirá para fazer sabão e velas de sebo. A passarinha, quando não vai para a cachorrada, pode ser recheada com guisado e dar um prato saboroso, cozida em panela.
Agora tem-se que separar o bucho, com coalheira e tudo, das tripas. O carneador pega uns fios da cerda da cola do animal morto, embebe-os em sangue e com a mão escurrupicha bem um palmo da tripa na saída da coalheira, forçando a limpeza do canal, afastando o bolo alimentar ou para a coalheira ou para as tripas. Aí, a uns 10 centímetros da boca da coalheira dá um nó com os fios de cerda, fechando a coalheira e corta, separando as tripas. Destas, as grossas serão salgadas e irão para o feijão, ou para a peonada pobre. As finas, desligadas a faca da extremidade final, serão bem lavadas com água e limão, viradas do avesso com o "pau-de-virar-tripa" longo e fino (apelido de gente magra, também) e soprados com um talo de mamoeiro e, em graciosas volutas, postas a secar. Depois de bem secas ao sol, serão enroladas em novelos e ficarão à espera do momento de virarem linguiça. A coalheira (o chamado 60 folhas ou "livro vai fora") pode ficar para fazer o leite coalhar para a coalhada, o queijo, o requeijão, a ricota; pode ser salgada e ir para o feijão ou pode ser atirada aos cachorros. O bucho vai ficar uma meia hora enrolado no couro, para fermentar e ser pelado mais fácil. Será esvaziado do quilo, o bolo alimentar verde e mal cheiroso do seu interior. Essa massa só serve para adubo e para esfregar no laço que perdeu armação, por velho ou por ter tomado chuva. Estica-se o laço entre duas árvores e se passa essa pasta verde em todo o seu comprimento. Uma vez seco, o laço está pronto para ser armado de novo, com todas as suas rodilhas. Do meio dessa massa às vezes sai uma bola. O bucho tem que ser bem limpo, com água e limão, virado e pelado, o que é um trabalho imenso, quase sempre entregue a alguma negra velha da estância. "Pelar mondongo" é ainda hoje expressão de trabalho demorado e fastidioso. Uma vez pelado, o mondongo vai para o sal. Serve para fazer vários pratos, como guisado, ensopado (dobradinha), no feijão, com arroz (substituindo o charque do arroz-de-carreteiro). Recomenda-se bastante pimenta. Não se perdem nem as graxas das tripas, que são retiradas e colocadas normalmente em um balaio de taquara, Servirão para fazer o sabão preto e as velas de sebo, mas também, em caso de aperto, podem ir parar no feijão, que aceita tudo.
Sai a ossada do pescoço, a do espinhaço também, com o arrelinho (ou "selinho", os grandes ossos de bacia) e tudo. Nos ranchos antigos esses ossos eram atados com tentos e viravam um confortável banquinho campeiro. Com o começo do espinhaço, saíram também as agulhas (são duas). Desses ossos todos serão tirados pedaços de carne, a ponta de faca, que servirão para encher linguiça. Depois, serão fervidos para se apurar a gordura, que será usada no feijão. Os ossos, finalmente limpos, serão jogados fora, no chiqueiro, ou vendidos, quando surge alguém que compre.
Tira-se a rabada, sempre gorda, que dá um prato sensacional, ensopada com mandioca (aipim, na realidade) ou com batata-inglesa.
Trabalha-se a cabeça da rês. Dali sai a língua. Nos tempos antes do "frezzer" a língua era socada no pilão, com sal. Serve para alguns pratos deliciosos. Os miolos são tirados a machado, mas em muitas regiões não há tradição de comer miolos.
Quando a rês carneada era uma vaca, não se perdia o ubre, o qual, salgado ou verde, pode ser assado no espeto, frito, ensopado na panela e no feijão.
É difícil carnear uma rês, pois o serviço todo de carneação - só a carneação - não leva muito mais que uma hora se os dois homens e o ajudante são competentes.
Quantos pratos são preparados à base de vacum! Com carne verde se faz o churrasco (com espeto), o assado (na grelha ou nas brasas, diretamente) a carne assada (em assadeira, no forno), o assado de panela (na panela, só a carne, sem mais nada), no arroz, com massa (feita em casa ou industrial), nos guisados, nos ensopados, nos pratos com farofa ou sarrabulho, em pastéis ou empadinhas, com farinha de trigo, de madioca ou de milho, com cangica (de milho ou de trigo), com vários tipos de vegetais, com feijão, com milho (verde ou não), com abóbora ou moranga, com batata-doce, com porongo verde, com pêssego verde. E os pratos à base de charque. O arroz-de carreteiro, o charque com feijão, como guisado, como guisado acompanhado de tudo (batata-doce, batata-inglesa, mandioca, abóbora, etc...), nas cangicsa, no assado de charque com pirão de farinha de mandioca com água fria, nas paçocas (charque fervido, desfiado batido no pilão e refogado com gordura e farinha de mandioca), nos sopões, de tudo que é jeito.
Resta dizer uma palavra sobre o que o gaúcho come e não deve comer e sobre o que o gaúcho não come e deve comer.
Não deve comer toucinho, torresmo e tatu. Os dois primeiros arrebatam qualquer nível de colesterol. São do tempo de uma atividade física muito dura, que queimava qualquer gordura. Os netos e bisnetos daqueles homens rudes, que viviam a cavalo domando, laçando, tropeando e coisas assim, hoje são quase sedentários, de pouco dinamismo, sentados em seus escritórios ou em seus automóveis. Daí a que vem as grandes incidências de moléstias vasculares entre as pessoas. O tatu é hospedeiro de organismos que causam a lepra e de outros que causam o mal de Chagas. Sua carne é apenas assada, ou seja, o calor não chega para matar os agentes causadores dessas doenças. É muito perigoso!
Por outro lado, pratos deliciosos poderiam sair de outros bichos que são abundantes no campo, desde a estância mais rica ao rancho mais pobre e que praticamente ninguém come: serve para apenas de enfeite de pátios, lagoas e campos. A lebre, bem preparada, é uma delícia. O peru só se come na cidade e no Natal. A angolista é um faisão, simplesmente, porém mais terno. As pombas de casa chegam a ser uma praga e dão belos e deliciosos pratos. Patos, marrecos e gansos se multiplicam assombrosamente e gaúcho campeiro não come nem os ovos desses bichos! Finalmente, as tartarugas: terror dos pescadores, são adoradas pelos caboclos do outro Brasil. Aqui, só servem para fornecer os cascos, usados pelo artesanato. Isso, sem falar em rãs, mussuns, caracóis e cogumelos.