Anestesia em quelónios/Imprimir
Anestesia em quelónios | ||||
Os quelônios, como répteis que são, possuem uma série de particularidades anatômicas e fisiológicas com evidente influência nos métodos anestésicos. Para começar o fato de serem animais poiquilotérmicos e de coração tricavitário. Os animais poiquilotérmicos possuem metabolismos variados para diferentes temperaturas – para uma qualquer importante reação química, os poiquilotérmicos podem ter entre quatro a dez sistemas de enzimas que operam a temperaturas diferentes. Como resultado a temperatura à qual o animal se encontra na ação da indução da anestesia pode alterar o patrão metabólico das drogas no organismo.
A anatomia respiratória dos quelônios apresenta especial interesse já que a manutenção (e por vezes a indução) anestésica é conseguida através de anestésicos inalatórios. A inspiração/expiração realiza-se através da fossa nasal, não sendo fisiológica a respiração através da boca. O ar inspirado penetra a traqueia através da glote, a qual se encontra ao nível caudal da base da língua – a este nível a intubação traqueal é dificultada pela língua, que nestas espécies é bastante grossa, e pelos poderosos músculos do esfíncter laríngeo. Certos estudos demonstram que a aplicação local de succinilcolina não parece facilitar a intubação.
A maioria das tartarugas, excetuando as marinhas (sub-família Pleurodira), apresenta um curto tubo traqueal, em comparação com outros répteis, já que a traqueia sofre uma bifurcação muito cedo, ao nível dos territórios craniais do pescoço, em dois brônquios principais; esta particularidade obriga à utilização de tubos endotraqueais curtos que terminem antes da bifurcação. Esta bifurcação permite ao animal respirar mesmo quando se encontra com a cabeça escondida tendo o pescoço dobrado (já que a luz brônquica não se oclui). A disposição particular dos pulmões por baixo da carapaça faz com que os dois brônquios apresentem uma trajetória ventro-dorso-cranial para assim poderem entrar nos pulmões. Comparativamente aos mamíferos apesar do volume pulmonar nos quelônios ser maior, a superfície respiratória é menor já que estes são animais de baixo metabolismo. Nos processos respiratórios intervêm vários grupos musculares, ajudados por movimentos das extremidades e da cabeça. Assim, não apresentam uma pressão negativa intra-torácica, o que possibilita que a respiração não seja afetada ante graves traumatismos da carapaça que exponham os pulmões ao exterior. Muitas espécies de tartarugas aquáticas desenvolveram órgãos respiratórios complementares para quando se encontram submersas. Assim as tartarugas de carapaça fina (família Trionychidae) podem respirar através da pele e da cobertura da garganta. O género Rehodytes (subordem Pleurodira) apresenta um elevado desenvolvimento das bolsas cloacais, órgãos de paredes finas por onde pode respirar ao manter a cloaca aberta. A respiração através das bolsas cloacais também é utilizada por outras espécies, como as tartarugas mordedoras (família Chelydridae) e as diferentes espécies das Galápagos. Estas particularidades nas superfícies respiratórias podem ser utilizadas para a utilização de vias anestésicas não comuns em mamíferos como a imersão do animal numa solução diluída do agente anestésico.
Ainda em relação ao sistema respiratório dos quelônios existem algumas notas clínicas a ter em conta:
- A extraordinária capacidade dos quelônios para manterem longos períodos de apneia, cria dificuldades na indução de anestesia inalatória sem a ajuda de pré-anestésicos injetáveis.
- A configuração do seu aparelho respiratório favorece a permanência e fixação de secreções e objetos estranhos nos pulmões. Isto é determinado por uma série de fatores como: a falta de um verdadeiro músculo diafragmático que colabore nos processos de expulsão (mecanismo da tosse); um amplo volume pulmonar; a divisão dos pulmões; a localização dorsal da entrada dos brônquios nos pulmões.
Por estas razões patologias respiratórias são frequentes e com consequências na escolha das vias anestésicas.
Outra particularidade anatômica importante nos répteis e presente nos quelônios é a existência de um sistema porta-renal. Graças a esta rede venosa o sangue proveniente da cauda e dos membros posteriores vai para os rins – existem no entanto shunts que ligam o sistema porta-renal à veia cava caudal evitando a passagem pelo parênquima renal. A importância disto é que não é aconselhável a injeção de agentes anestésicos nas áreas cujo sangue é recolhido pelo sistema porta-renal, já que muito deste seria excretado pelos rins antes de atingir o coração evitando a sua difusão sistêmica.
Antes da administração de anestesia é necessário ter em consideração alguns pontos fundamentais, tais como a contenção física.
A primeira ação a tomar é a observação do animal sem qualquer intervenção que o possa deixar perturbado, para uma correta interpretação dos níveis de atividade, respiração, condição física, sinais vitais e também para a observação de distúrbios nutricionais ou processos inflamatórios, necessários para um correto diagnóstico.
A seguir procede-se a um exame cuidadoso e rigoroso. Devem ser tomadas precauções na realização do exame, pois algumas tartarugas podem provocar dolorosas mordeduras no clínico. Em determinadas situações poderá ser exigido o uso de uma proteção que rodeie a cabeça da tartaruga ou que o animal se encontre sedado. Dependendo do tamanho, por vezes não poderão ser manejadas por uma só pessoa, devido ao seu peso, e se dentro de água, graças à sua agilidade e fácil capacidade para se libertarem. Num tanque é possível manter um tartaruga de porte razoável segurando-a na carapaça por trás. Não deverão ser suportadas de lado, pois torna-se mais fácil soltarem-se. Contudo deverá haver moderação na força aplicada pois corre-se o risco de magoar o animal.
O exame deverá conter a história completa do animal, exame físico e recolha e análise de sangue. Poderá ainda conter exames como radiografias, análise hematológica, plasmática e fecal, bem como amostras microbiológicas que contribuirão para a correta interpretação do estado de saúde do animal. A manipulação destes animais requer conhecimento e paciência. O exame físico das pernas e da região cloacal é muito importante, tal como a da cabeça, focando regiões fundamentais como os olhos, as membranas timpânicas e narinas. Muitas doenças infecciosas e não infecciosas afetam funções renais e hepáticas. A observação da cavidade oral para o registo de abcessos ou lesões traumáticas revelam-se importantes na intubação endotraqueal e na manutenção da anestesia.
A recolha de sangue pode ser feita em vários locais. O local mais comum, nos quelônios, é nos membros anteriores através da veia e artéria braquiais. A localização dos vasos é difícil de discernir, embora em tartarugas de grande porte seja possível palpar os vasos. O melhor sítio para a recolha de sangue em tartarugas é a veia jugular, que se encontra por debaixo da pele lateralmente ao pescoço; outras hipóteses são as veias coccígeas ventrais e dorsais e em último caso a cardiocentese. Por vezes o grande problema é a estabilização do animal durante a recolha, podendo ser necessário sedar para diminuir o stress do animal. Uma amostra pode também ser obtida a partir dos seios cervicais dorsais, local muito utilizado em tartarugas marinhas. Em tartarugas de água-doce os locais selecionados são as veias jugular e subcarapacial; a veia jugular percorre o tímpano até à base do pescoço e a veia subcarapacial encontra-se na junção entre a pele e a carapaça – a veia é puncionada no local de fusão da 1ª vértebra com a carapaça.
Os valores recolhidos através da amostra sanguínea podem variar com a localização geográfica das tartarugas, com a idade, sexo e a sua atividade. A recolha não deverá exceder o 1% do peso corporal do animal, para evitar situações de hipovolêmia. Poderá ser usado como anticoagulante lítio heparina.
Dias antes da anestesia o ideal é que os animais se encontrem em condições estáveis de temperatura ótima, para promover a estabilização do seu metabolismo. A temperatura ótima varia de espécie para espécie, mas a grande maioria das espécies esse valor encontra-se ente os 21-26,7 °C (70-80 °F). Para a espécie "red-eared" a temperatura ótima assume valores entre 22,2-33 °C (72-86 °F), para as tartarugas pintadas os valores são entre 22,8-27,8 °C (73-82 °F) e para a espécie "musk" é de 20-25 °C (68-77 °F). No caso de tartarugas marinhas a temperatura ótima é aproximadamente 25-30 °C (77-86 °F).
O conhecimento do peso corporal é fundamental para o cálculo da dose correta do agente anestésico a ser administrado.
Torna-se também importante reconhecer as particularidades de cada espécie por exemplo se nas tartarugas marinhas a indução de anestesia é ou não mais rápida.
O suporte inicial da anestesia inclui a administração de uma solução eletrolítica balanceada (5-10 ml/kg/h) – usada em mamíferos e que em répteis a sua função ainda não foi completamente esclarecida – , o controle da temperatura, suporte nutricional e uma terapia antimicrobiana. Todos estes aspectos contribuirão para a diminuição de riscos da anestesia e cirúrgicos, para uma diminuição do tempo de recuperação, aumentando a ação do sistema imune, promovendo assim o bem-estar e saúde animal. Uma das soluções utilizadas, a solução de Ringer, pode ser administrada via intravenosa, subcutânea ou intracelômica. Para reduzir o stress deverá ser evitado ao máximo o contato manual com a animal.
A pele dos quelônios, como da generalidade dos répteis é muito sensível a estímulos dolorosos. A prática da anestesia local é usada em inúmeros procedimentos clínicos, mesmo em pequenas intervenções cirúrgicas. E como recurso à anestesia geral que produz alterações fisiológicas mesmo em pacientes saudáveis. O fármaco mais usado é a lidocaína numa percentagem de 2% em remoções de abcessos, reparação de lacerações cutâneas e inúmeros procedimentos.
Lidocaína como anestésico local, é um bloqueador rápido dos canais de sódio, ativados ou inativados, existentes nos miócitos especializados do sistema de condução (coração) ou nervos periféricos.
São várias as formas de administração de agentes anestésicos em quelônios. A mais praticável é pelas vias injetáveis devido à sua fácil administração e baixo custo. Apresenta também algumas desvantagens, não é possível controlar a anestesia após a indução e há muita dificuldade em reverter o seu efeito, sendo a sua grande desvantagem o prolongado tempo de recuperação pelo qual o animal tem de passar. A mais usada é a via intramuscular, que embora necessite de doses mais elevadas que na intravenosa torna-se mais simples que esta, pois o acesso venoso nem sempre é uma tarefa fácil.
Uma combinação frequentemente usada em quelônios é a associação de ketamina HCl com Diazepam para efeitos anestésicos e sedativos. A ketamina é um agente sedativo usado em doses de 22–44 mg/kg por via intramuscular ou subcutânea e em doses de 55–88 mg/kg num plano cirúrgico. O seu tempo de indução varia entre 10 a 30 minutos o que é bastante rápido, mas o seu tempo de recuperação é muito mais longo até vários dias (96 horas). Um conceito relevante é a dose de fármaco que nas tartarugas tem uma particularidade. Em tartarugas menores é necessária uma dose maior de ketamina por unidade de peso corporal que em tartarugas de grande porte.
As tartarugas das Galápagos são sedadas, para pequenos procedimentos cirúrgicos, com uma dose de etorfina HCl com uma dose de 0,22 mg/kg. Em tartarugas de maiores dimensões é usada a combinação tiletamina-zalozepam a uma dose de 5–10 mg/kg via intravenosa e via intramuscular para facilitar a intubação traqueal.
No caso de a sedação não ser suficiente para permitir a intubação traqueal, após a administração de telazol é colocada uma máscara no animal com isoflurano, em vez de doses repetidas de telazol, para diminuir o tempo de recuperação. Em tartarugas africanas, o uso de grandes doses de Telazol aumenta o tempo de recuperação para mais de 3 dias.
Contudo sempre que se recorre ao uso de máscara deverão ser tomados alguns cuidados, por exemplo no caso de tartarugas marinhas o seu ciclo respiratório é irregular e podem suster a respiração por longos períodos de tempo. Uma dose mínima de fármaco injetável reduz visivelmente o tempo de recuperação.
Chelania mydas, uma espécie de tartarugas marinhas têm sido anestesiadas com pentobarbital, tiopental e ketamina. O uso do pentobarbital é satisfatório, pois tem um bom efeito anestésico, porém prolonga em demasia o tempo de recuperação. A recuperação com o uso do tiopental é mais rápida, mas a anestesia é errática. O uso de ketamina apresenta bons resultados sempre que administrada intraperonealmente.
Alfloxalona/alfadolona têm sido recomendados como pré-anestésicos antes da indução da anestesia inalatória em répteis. Se a administração for intravenosa o tempo de indução é de 2 a 4 minutos, permitindo uma rápida intubação traqueal e a administração da anestesia inalatória. Contudo, após administração intramuscular a indução da anestesia aumenta o seu tempo de indução para 30 minutos. A dose ótima para quelônios é de 15 mg/kg para produzir 15 a 30 minutos de anestesia.
Propofol tem como característica um curto tempo de ação hipnótica, normalmente muito usado um humanos. O seu uso deve-se ao seu rápido tempo de ação, mínima acumulação após repetidas administrações e uma rápida recuperação sem efeitos excitatórios.
As desvantagens no seu uso são a indução de depressão do sistema cardíaco e respiratório. Em répteis a sua grande desvantagem é o uso por via intravenosa, pois neste animais há espécies em que o acesso venoso é extremamente complicado ou mesmo impossível. A dose usada é de 5–10 mg/kg via intravenosa ou outras doses 1 mg/kg/min.
A manutenção da anestesia é a regulação de fatores essenciais, que permitem controlar e aumentar a eficácia desta prática clínica.
O grande objetivo é manter a anestesia no animal até o procedimento cirúrgico terminar, de modo que a sua recuperação seja o mais rápida possível. Para isso a anestesia deve ser dada e mantida sobre condições ótimas para o paciente.
Obviamente importante é manter o animal sobre o efeito anestésico. Repetidas doses de anestésicos injetáveis trazem muitas desvantagens na recuperação do animal, para além de se tornar complicado controlar a anestesia. A inalação de gases inalatórios permite um controlo sobre a anestesia, sobre a dose inalada em cada instante sendo muito fácil interromper a anestesia, com um curto período de recuperação. Assim, os gases inalatórios são a melhor opção para manter o paciente sob efeito anestésico, por certos períodos de tempo sem prejudicar a sua recuperação, pois estes fármacos atuam rapidamente difundindo-se dos pulmões para o sangue percorrendo todo o corpo, e do mesmo modo a sua remoção é também muito rápida. Os anestésicos inalatórios mais usados são o halotano, isoflurano e sevoflurano.
Para além de manter o paciente sobre o efeito anestésico, o clínico é responsável por monitorar os sinais vitais durante a prática cirúrgica. Um dos grandes desafios é a manutenção do sistema cardio-respiratório, pois este é influenciado durante a anestesia, podendo causar efeitos como apneia ou bradicardia. A frequência cardíaca é um fator difícil de interpretar e controlar. A diminuição do ritmo cardíaco pode ser simplesmente um processo normal ou resultar de uma diminuição da temperatura, manipulação cirúrgica ou um estado extremo de anestesia profunda. Um modo de evitar duvidas é associar a frequência cardíaca com o ritmo respiratório. Se a tartaruga se encontrar no intervalo de temperatura ótima é possível calcular a frequência cardíaca segundo uma escala alométrica pela equação: frequência cardíaca = 33.4 (peso corporal kg) -0,25. Há valores padrão que podem facilitar a determinação de irregularidades, por exemplo em tartarugas pintadas à temperatura de 25 °C registra-se o valor de 22-25 batimentos/minuto, para as "red-eared" 25 a 29 batimentos/minuto a 20 °C, 34 a 61 batimentos/minuto a 30°C e 70 batimentos/minuto a 35 °C.
Existem vários métodos de monitorizar a frequência cardíaca. O melhor é um aparelho ultrassônico com um cristal colocado sob o triângulo femoral ou inlet torácica. Outros sítios como a artéria carótida, diretamente sobre o seio cervical dorsal ou sobre a córnea são outras alternativas.
O controlo da temperatura, já referido anteriormente como fundamental para a indução da anestesia, é também muito importante na manutenção. A circulação de água morna no animal pode ser um auxílio no seu controlo.
Muito importante também é a administração de fluidos, em especial a animais que se encontrem doentes, debilitados, traumatizados ou que estão sob extensiva cirurgia. Fluidos mornos podem ser administrados via subcutânea, intracelômica ou intravenosa em doses de 5 a 10 mg/kg/h.
Embora a recuperação possa ser bastante prolongada, o acompanhamento, suporte e monitorização deverão ser levados até que o animal acorde da anestesia. Tartarugas que ficaram sob o efeito anestésico duas ou mais horas apresentam hipotermia, hipoxia e acidémia.
Uma breve descrição das referências bibliográficas necessárias para a viabilização deste livro.
Referências
[editar | editar código-fonte]- MOON P. F.; HERNANDEZ-DIVERS S. M.; Reptiles: Aquatic Turtles (Chelonians). International Veterinary Information Service, Ithaca, New York, USA, 2001 artigo (em inglês)
- Atlas da Anatomia das Tartarugas Marinhas (quelónio) livro de 25.5 mb (em inglês)