Sociologia e Comunicação/Comunicação - mercados linguísticos e poder simbólico
A Doxa
[editar | editar código-fonte]Vamos refletir, agora, sobre os atos de fala, os discursos, as narrativas que são fundamentais para a nossa existência como seres humanos. A eficácia de um discurso está no fato de funcionar como Doxa, isto é, como uma verdade “evidente” sobre a qual nunca pensamos.
É o que Ludwig Wittgenstein, em Investigações filosóficas, quis dizer:
“Aquilo que se sabe quando ninguém nos interroga, mas que não se sabe mais quando devemos explicar, é algo sobre o que se deve refletir. (E evidentemente algo sobre o que, por alguma razão, dificilmente se reflete)”.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que a nossa capacidade para falar depende de algumas competências específicas que desenvolvemos: uma Competência Técnica e uma Competência Social.
Competência técnica e social
[editar | editar código-fonte]Nossa competência técnica aparece pela nossa própria condição humana: seres humanos podem falar, ou seja, tem em seu corpo os meios físicos (anatômicos e neurológicos) necessários para produzir a fala.
No caso da competência social - como o próprio nome diz - ela é adquirida socialmente, uma vez que, a fala precisa ser aprendida.
Falar não consiste apenas em emitir palavras organizadas em um certo código linguístico, mas também é preciso saber o que falar, com quem, quando e de que modo.
Se não falamos com qualquer um, de qualquer modo, sobre qualquer coisa, a qualquer momento, isso significa que a nossa fala pressupõe alguns rituais sociais ou jogos de linguagem. Esses jogos ou rituais dependem do desenvolvimento de certos tipos de sensibilidade.
Vamos chamar essa sensibilidade de senso de oportunidade e senso de aceitabilidade.
O Senso de Oportunidade (Kairós)
[editar | editar código-fonte]Diziam os sofistas que, no aprendizado da arte de falar bem, é preciso estar atento para a percepção do momento oportuno da fala (Kairós).
Pouco importa o que dissermos se não for dito de maneira oportuna, no momento certo. Essa competência está relacionada como o (re) conhecimento da situação e do momento da fala.
Também é importante lembrar que quando falamos, produzimos um produto muito especial que não está sujeito apenas a interpretação, mas, também, a avaliação.
Muitas vezes, a condição necessária para que o discurso seja aceito não está no entendimento que temos dele, mas do valor que damos a quem o pronuncia.
Portanto, qualquer discurso produz signos a serem interpretados, certamente. Mas, ao mesmo tempo, eles apresentam-se como signos de riqueza (esses discursos são valorizados ou desvalorizados) e signos de autoridade (eles tem o poder de realizar coisas no mundo)
O Mercado Linguístico
[editar | editar código-fonte]Vamos analisar, agora, o conceito de mercado linguístico:
Carregamos conosco esse conjunto de disposições – uma espécie de “memória” – das nossas experiências com a fala em determinadas situações (falando com os pais, amigos, vendedores, professores, clérigos).
Esse conjunto de disposições é o que chamamos de nosso habitus linguístico – um certo modo de falar. Ele faz com que tenhamos condições de antecipar algumas reações das pessoas a quem nos dirigimos e que sejamos capazes de reconhecer determinadas situações sociais.
Essas situações que aprendemos a reconhecer são os chamados mercados linguísticos, uma vez que, neles, a nossa fala pode ser valorizada ou não, pode sofrer concorrência, pode ser monopolizada etc.
“[Uma ciência do discurso](...) deve levar em conta as leis de formação de preços características do mercado em questão (...) as condições de recepção antecipadas fazem parte das condições de produção, e a antecipação das sanções do mercado contribui para determinar a produção do discurso. (...) Tal sentido (...), acaba determinando as correções e todas as formas de autocensura, concessões que se outorgam a um universo social pelo fato de aceitar tornar-se aí aceitável.” (Pierre Bourdieu. Economia das Trocas Linguísticas)
Quando produzimos um discurso, desenvolvemos também uma antecipação das condições em que aquele discurso será recebido. Essa antecipação, quando negativa, pode levar-nos a um conjunto de medidas de autocensura.
Por outro lado, algumas pessoas acabam agindo como porta-vozes da opinião de uma série de ouras pessoas em um mercado linguístico.
Eles ou elas são capazes de falar como representantes de um grupo, colocam-se como um grupo falando e, assim, fazem com que determinados interesses e motivações ganham um lugar em meio às palavras e transforme-se em discurso que merece ser ouvido.
Será que isso que ocorre no chamado Mansplaining ou Manterrupting? Será que o movimento feminista, por exemplo, precisa enfrentar este tipo de questão?
No caso dos povos colonizados, existe sempre a questão levantada por Gayatri Spivak: Pode o subalterno falar?
O Poder Simbólico
[editar | editar código-fonte]O poder simbólico é um poder (econômico, político, cultural ou outro) que consegue ser alvo de reconhecimento, por isso, é preciso entender que se trata de um tipo de poder que não é físico (embora possa ter consequências reais). Ele é exercido no plano do sentido, na sua capacidade de gerar conhecimento e reconhecimento.
Ele está relacionado com a questão do enquadramento (framing).
O enquadramento é um dispositivo interpretativo, um padrão de organização do discurso, que estabelece alguns princípios de seleção de certas palavras e ângulos de abordagem na construção das notícias. São padrões de apresentação, cognição e interpretação; de seleção, ênfase e exclusão que organizam a narrativa escrita e audiovisual. A combinação de determinadas ações em determinados contextos são capazes de produzir certos enquadramento ou quadros de referência para os indivíduos como observa Erving Goffman, que desenvolve amplamente o termo.
As palavras exercem, assim, um poder tipicamente mágico: fazem ver, fazem crer, fazem agir.
Mas essa magia, como toda outra, não pode ser explicada apenas por esse poder do produtor do discurso. É preciso ir além e reconhecer as condições sociais que possibilitam essa eficácia mágica das palavras.
Quem fala? Quem está autorizado a falar? De que lugar falamos?
Para completar, é preciso observar que esse poder das palavras só pode ser exercido sobre aqueles que estão dispostos a ouvi-las, a crer nelas.
Vamos observar o que dizem as duas citações abaixo:
“…os agentes sociais e os próprios dominados estão unidos ao mundo social (até mesmo ao mais repugnante e revoltante) por uma relação de cumplicidade padecida que faz com que certos aspectos deste mundo estejam sempre além ou aquém do questionamento crítico” (Pierre Bourdieu em O que falar quer dizer)
Vale a pena pensar em uma observação de outro intelectual francês:
“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”. (Michel Foucault em Microfísica do poder)
Referências
[editar | editar código-fonte]COLLING, Leandro. Agenda-setting e framing: reafirmando os efeitos limitados.
Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 14 • abril 2001
LINS, Daniel (org). Pierre Bourdieu: o campo econômico. Campinas (SP), Editora: Papirus, 200 (O que é falar? p. 51-57)
GIRARDI Jr, Liráucio. Pierre Bourdieu: Mercados Linguísticos e Poder Simbólico. Famecos, Porto Alegre, v. 24, n. 3, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2017
KARHAWI, Issaaf . Influenciadores digitais: conceitos e práticas em discussão. Revista Communicare. Volume 17 – Edição especial de 70 anos da Faculdade Cásper Líbero
LEMOS, André. A nova esfera conversacional. in Dimas A. Künsch, D.A, da Silveira, S.A., et al, Esfera pública, redes e jornalismo., Rio de Janeiro, Ed. E-Papers, 2009, pp. 9 – 30.