Como enlouquecer se já se está fora de si?/Prefácio

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A vida é um mistério, sobretudo por começarmos a perceber o mundo e nos sentirmos o centro dele, nada mais natural e um grande alívio para aqueles que são injustamente chamados narcísos - talvez em alguns aspectos, mas seria um exagero - por olharem nas águas, reflexos sobretudo de humanos, semelhantes todavia únicos, como cada ser vivo que habita esta esfera que viaja pelo espaço.

Minha infância, e, sim, este texto será intimista, e o escrevo para entender um pouquinho e continuar a viver de forma razoável, foi em uma pacata cidade histórica no interior do Estado de Goiás, no centro do Brasil: um local chamado de cerrado - embora este esteja acabando em seus últimos suspiros em pequenos arques protegidos por leis ambientais. O Cerrado só possui duas estações, uma chuvosa e mais quente, e uma seca que é ligeiramente mais fresca, sobretudo à noite, quando a amplitude térmica de uma savana mostra toda a sua amplitude, e, da mesma forma os homens e mulheres do cerrado são adaptados, amplos, mal falados mas sérios, dispostos a fazer o certo, o bem comum; o homo cerratense, expressão cunhada pelo historiador Paulo Bertran, é como uma luz azul, com um período dilatado e uma frequência, giro, tão rápida como um carro de boi andando sobre capim nativo e por entre inúmeros cupinzeiros gigantes parecidos com as tumbas de alguns povos antigos - não os originários daqui. Voltando à infância, repleta de doenças e sem recursos familiares para o deslocamento e o tratamento, todos, nosso lar se adaptou aos desafios sem medos: não existia medo da minha parte e menos ainda da deles, existia toda a disposição e muita fé, esperança e amor - os goianos acreditam em seu Deus ou seus Deuses, por muito tempo fomos curados de dores repetindo palavras como efeito sugestivo de uma arte médica sem diploma, sem farmácia, sem terra, sem dinheiro e sequer liberdade para votar - pois o voto aqui era de cabresto, e pertencia aos coronéis - sem patente - que tratavam seus amasiados como escravos que pagavam para laborar - talvez a situação de hoje, embora o despotismo seja mais hipócrita e esclarecido, seja parecida.

Fiquei doente dos quatro anos de idade até os onze, passei metade desse tempo em leitos hospitalares. Mesmo com meus problemas incompreendidos eu era, e sou, grato por ter jogado futebol, catado caju, namorado, andado de bicicleta e nadado em rios de água cristalina quando o tempo da internação cessava e eu voltava, mais grato e cheio de energia que nunca: sim, fui muito realizado com tal infância.

Aos vinte e um anos, na faculdade de medicina, eu apresentei o sintoma de um problema que foi causado pela suposta superação leviana do passado - como uma ditadura militar que é esquecida e que se manifesta em uma crise democrática trinta e três anos depois da democracia emergir. Comecei a usar cocaína. Logo percebi que aquilo me ajudava na concentração e na organização das minha atividades diárias - o preço foi muito alto. Na metade do terceiro ano tranquei o curso e fui procurar um tratamento, que naquela época nem existia, exceto nos sanatórios repletos de barbaridades. Depois de cinco anos entrando e saindo de instituições eu fui diagnosticado por um teste de oito horas com TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Após o diagnóstico e o tratamento me estabilizei na sobriedade depois de dez anos, cinco deles de uso constante. Era o ano de 2015, e àquela época, aos trinta e três anos de idade, ainda não tinha uma graduação, perdi quase todos os amigos e uma companheira de dez anos de convivência. Mesmo assim a vida me pareceu bem melhor, ótima.

Para faturar algum dinheiro, sem instrução formalizada por títulos de mérito, comecei a juntar meus trocados e comprar tudo o que estivesse em promoção e que tivesse liquidez para revenda, se possível agregando algum valor na forma de serviço. Consegui ser feliz com o meu trabalho e as horas que me sobravam para ler e exercer atividades mais eruditas me realizavam, dentro das minhas limitações, intelectualmente. A alegria começou a ser abalada em 2018 quando passei por uma cirurgia de retirada do apêndice intestinal - órgão vestigial que evidencia a evolução dos seres vivos e das espécies, a própria prova da especiação... como se Deus se importasse? Claro que não! Ele é o criador do mesmo jeito, pois provêm quando o fim da linha parece inexorável - alguns chamam de sorte ou de ânus virado para a Lua. Após uma cirurgia mal sucedida realizei mais sete ou oito, até ficar com o abdôme sem musculatura efetiva, com feridas cirúrgicas sem suturas e com partes do meus intestino visível comunicando com o ambiente interno... várias luzes. Tal condição de saúde física atingiu minha mente no final de novembro de 2019: a partir daquele momento eu voltei a beber e a usar cocaína quando tinha oportunidade.

Algo infinitamente mais estranho aconteceu nesse tempo, até a metade do ano de 2023, e de certa forma ainda acontece, ainda que apenas em mim, até hoje - 2024 -, sendo necessário escrever este livro, não para uma plateia, mas tudo bem se alguém gostar, e sim para eu seguir em frente como o milionário que me tornei: tenho um milhão de problemas.

Portanto a memória reflexiva, que ao ser lida será questionada, pois, eu não tenho toda a sua ciência, descreverá e refletirá, como o Narcíseo no espelho, espelho social da contemporaneidade que de tanta tensão e superficialidade, como a flor do lago da lenda grega de cinco versões, terei que retornar até agosto de 2019 e me prolongar até o ano de 2024, suponho, para que a entendamos, e, para quiçá a graça divina, celestial, essências dos homens frequentemente ocultadas por medos e preconceitos, possam nos proporcionar algumas risadas através de tais letras que nos tornariam, em teoria, mais leves. Vamos lá!

Carinhosamente,

Djalma Sampaio - Wikipédia, 20 de maio de 2024.