Medida e integração/Mensurabilidade

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Introdução[editar | editar código-fonte]

Nos cursos básicos de cálculo, aprende-se que a integral está intimamente relacionada com a noção de área que se conhece desde o ensino fundamental. A teoria da integração tem em suas raízes os trabalhos de matemáticos gregos como Eudoxo e Arquimedes, que viveram alguns séculos antes de Cristo.[1] Naqueles tempos, eles já eram capazes de calcular áreas e volumes por meio do método de exaustão, no qual se decompunha um todo em infinitas partes cuja área ou volume fossem quantidades conhecidas.

O maior avanço em relação a integração veio somente no século XVII, com a descoberta do teorema fundamental do cálculo, feita independentemente por Newton e Leibniz. No entanto, mesmo nesta época a teoria da integração carecia de uma formulação rigorosa. Foi Riemann quem, no século XIX, trouxe uma formalização da noção de integral através do uso de limites. Hoje em dia, os cursos de cálculo trazem tradicionalmente as ideias e propriedades mais relevantes da integral de Riemann[2].

Apesar de sua popularidade, a teoria de integração desenvolvida por Riemann tem algumas deficiências que se tornam evidentes quando se precisa estudar sequências de funções integráveis ou mesmo séries de tais funções. O exemplo notável surge ao considerar uma sequência de funções integráveis à Riemann que em cada ponto converge para um valor Geralmente, quando se tem uma sequência convergente (no caso, e uma operação sendo feita sobre cada um de seus termos (no caso o cálculo da integral de Riemann), é importante poder "comutar o limite e a operação". No exemplo citado, seria interessante que valesse a seguinte igualdade:

Usando-se a integral de Riemann, para se ter garantia desta propriedade é preciso exigir muito mais do que a convergência pontual: Se a sequência for uniformemente convergente, pode-se comutar o símbolo da integral com o do limite.[3]

Henri Lebesgue, em 1902 desenvolveu em sua dissertação[4] uma teoria de integração mais elegante, preenchendo as grandes lacunas na teoria de integração de Riemann. Devido a importância daquele trabalho, a teoria é hoje chamada de Integração de Lebesgue.

O conceito de mensurabilidade[editar | editar código-fonte]

Quando se estuda topologia, um conceito que está sempre presente é o de função contínua. As funções contínuas tem várias propriedades interessantes e são fundamentais no estudo de espaços topológicos. Em contrapartida, no desenvolvimento da teoria de integração, certo tipo de funções, as chamadas funções mensuráveis, também têm grande importância. Estas funções possuem algumas características em comum com as funções contínuas, e isto ficará evidente conforme forem deduzidas algumas de suas propriedades.

Ao se definir o que são funções contínuas, é levada em consideração a forma como estas funções se comportam em relação a certos subconjuntos de seu domínio e seu contradomínio. Para ser mais exato, se diz que uma função é contínua quando a pré-imagem (ou imagem inversa) de qualquer aberto do seu contradomínio é um conjunto aberto do seu domínio[5]. De forma análoga, definem-se as funções mensuráveis considerando o comportamento destas funções em relação a conjuntos abertos do contradomínio e um outro tipo de subconjuntos do seu domínio: os conjuntos mensuráveis.

Apesar de ainda não ter sido dito o que é uma medida, esta é uma ideia que aparece em contextos bastante simples, como é o caso dos intervalos numéricos da reta de números reais. Intuitivamente, pode-se dizer que o comprimento do intervalo é igual a ou ainda, a distância de até Os intervalos são exemplos típicos de algo que se gostaria de poder "medir". Seria igualmente interessante poder medir as uniões finitas de intervalos, e também ser capaz de fornecer a medida da diferença entre dois intervalos. Propriedades como estas servem de motivação para se definir as -álgebras de conjuntos e em sequência a noção de mensurabilidade.

Definição 1.1

Dado um conjunto diz-se que uma coleção de subconjuntos de é uma -álgebra sobre se satisfaz as seguintes condições:

  1. Se então
  2. Se é uma sequência em então

Observações[editar | editar código-fonte]

  • Obs. 1.2: Conforme já foi dito, será usada a notação para denotar o complementar de em relação a sempre que o contexto deixar claro qual o conjunto em questão. Em particular, isto se aplica ao segundo item da definição de -álgebra. Assim, a propriedade 2 diz que se pertence a uma -álgebra, então também pertence.
  • Obs. 1.3: Decorre diretamente da definição que o conjunto vazio pertence a qualquer -álgebra, pois e [ver nota 1]
  • Obs. 1.4: Utilizando as leis de De Morgan, obtém-se uma propriedade equivalente à terceira exigência da Definição 1.1, mas que envolve uma interseção enumerável:

3'. Se é uma sequência em então

  • Obs. 1.5: Se é uma sequência finita em então

e

  • Obs. 1.6: Se e então De fato, sendo tem-se

[ver nota 2]

Como se poderia imaginar a partir dos comentários que precederam a definição definição de -álgebra, os conjuntos mensuráveis serão aqueles que verificam as propriedades acima. De forma mais precisa:

Definição 1.7

Se é uma -álgebra sobre o par ordenado é chamado de espaço mensurável e os elementos de são denominados conjuntos mensuráveis.

  • Obs. 1.8: É comum cometer um abuso de linguagem e se referir ao "espaço mensurável " sem mencionar a -álgebra como por exemplo ao dizer "o espaço mensurável ". Obviamente, isto só será feito quando ficar claro qual a -álgebra em questão. A situação análoga no contexto da Topologia é falar de um espaço topológico sem mencionar sua topologia, como em " é um espaço topológico".[ver nota 3]

Finalmente, uma vez caracterizados os conjuntos mensuráveis, a noção de mensurabilidade pode ser definida também para funções:

Definição 1.9

Se é uma função para a qual é um espaço mensurável[ver nota 4] e é um espaço topológico[ver nota 3], diz-se que é uma função mensurável ou aplicação mensurável se para cada aberto de sua imagem inversa for um conjunto mensurável.[6]

O próximo resultado mostra uma forma de se obter funções mensuráveis quando já se conhece uma função mensurável e uma contínua: basta realizar sua composição, aplicando primeiro a função mensurável e por último a função contínua.

Proposição 1.10

Sejam um espaço mensurável[ver nota 4], e espaços topológicos e uma aplicação mensurável. Se é uma função contínua então é uma aplicação mensurável.[7]

Demonstração
Se é um aberto em então é aberto em pois é contínua. Consequentemente, é um conjuntos mensurável, pois é mensurável e é aberto.

Um resultado análogo ao anterior, que pode ser aplicado quando se tem uma função contínua a duas variáveis reais (ou a uma variável complexa), é mostrado a seguir.

Proposição 1.11

Sejam um espaço mensurável[ver nota 4], e espaços topológicos, onde a topologia de é a usual. Se são aplicações mensuráveis e é uma função contínua então definida por é uma aplicação mensurável.

Demonstração
Considere a função definida por Então e pela proposição anterior, basta mostrar que é mensurável. Para isto, considere um aberto de Suponha inicialmente que é um retângulo cujos lados são paralelos aos eixos, ou seja, com e sendo intervalos abertos de Neste caso, tem-se

Como e são funções mensuráveis, e tanto quanto são conjuntos abertos, tem-se e mensuráveis. Mas a interseção finita de conjuntos mensuráveis é um conjuntos mensurável (ver observação anterior), então é mensurável.

Se for um aberto arbitrário do espaço existe uma família enumerável de retângulos abertos em com lados paralelos aos eixos, de tal modo que Deste modo,

Uma vez que se escreve como uma união enumerável de conjuntos mensuráveis, conclui-se que ele é mensurável (conforme a terceira propriedade que define uma -álgebra).

Como consequência imediata desta proposição, tem-se o seguinte:

Corolário 1.12

Sejam um espaço mensurável[ver nota 4] e um espaço topológico[ver nota 3] (com sua topologia usual[8]). Se são aplicações mensuráveis, então é uma aplicação mensurável.

Demonstração
Segue da proposição anterior, com e pois neste caso

para qualquer

Um outro resultado imediato que trata especificamente da mensurabilidade de funções de uma variável complexa é o seguinte:

Corolário 1.13

Sejam um espaço mensurável[ver nota 4] e um espaço topológico[ver nota 3] (com sua topologia usual[8]). Se é uma aplicação mensurável então são aplicações mensuráveis.

Demonstração
Primeiramente, para garantir que é mensurável, basta observar que onde é dada por é uma função contínua. Então, como é a composição de uma função contínua com uma mensurável, também é mensurável.

De forma análoga, observa-se que onde é dada por também é uma função contínua. Pelo mesmo argumento segue que é mensurável.

Com o mesmo raciocínio mostra-se que é mensurável, pois a função é contínua e

Além do que já foi mostrado até o momento, no conjunto das funções mensuráveis que tomam valores em um corpo também verifica uma propriedade muito frequente em matemática: o fechamento em relação a soma e o produto. Uma consequência disto é que um polinômio em funções mensuráveis continua sendo mensurável e, em particular, a multiplicação de uma função mensurável por uma constante (ou se preferir, um escalar) também é mensurável. O resultado que garante estas propriedades é apresentado a seguir.

Corolário 1.14

Sejam um espaço mensurável[ver nota 4], um espaço topológico[ver nota 3] (com sua topologia usual[8]) e Se são mensuráveis então e são mensuráveis.

Demonstração
;Caso 1

Se basta observar que a função de duas variáveis reais é contínua e que

portanto, é mensurável (conforme a Proposição 1.11).

Do mesmo modo, tomando tem-se novamente uma função de duas variáveis que é contínua e tal que

Donde se conclui pela mesma proposição que é mensurável.

Considerando a função constante definida por tem-se mensurável. De fato, seja um aberto de Então e ambos estes conjuntos são mensuráveis.

Assim, considerando que

para qualquer tem-se igual ao produto de duas funções mensuráveis e, portanto, é também mensurável. Em particular, quando conclui-se que é mensurável.

Caso 2

Se considere e as partes reais de e respectivamente. Do mesmo modo, sejam e as partes imaginárias de e respectivamente. Isto significa que e e consequentemente e

Conforme já foi demonstrado, se e forem funções mensuráveis, tem-se e mensuráveis. Pela demonstração do caso 1, as somas e são mensuráveis. Logo é mensurável. Do mesmo modo, segue do caso 1 que e são mensuráveis, portanto também é.

Finalmente, a mensuralidade de no caso complexo segue da mensurabilidade do produto de funções complexas recém provada, usando o mesmo argumento do caso real.

é mensurável

munido das operações pontuais de adição, multiplicação e multiplicação por escalar, é uma -álgebra (ou também uma sub -álgebra de ).

Definição 1.16

Dado um conjunto e a função característica de é a função definida por

Obs. 1.17: Note que o domínio da função característica de é e não

O próximo resultado mostra que um conjunto é mensurável se, e somente se, a sua função característica for mensurável (se vista como uma função que toma valores em Por simplicidade, a função definida por em cada elemento de também será denotada pelo símbolo ficando implícito que o contradomínio é o conjunto dos números reais ao se falar sobre a sua mensurabilidade. Além disso, como já foi dito, se não for feita indicação em contrário será considerada a topologia usual de

Proposição 1.18

Dado um espaço mensurável e as seguintes afirmações são equivalentes

  1. é mensurável;
  2. é uma função mensurável;

Demonstração
Assuma primeiramente que é mensurável. Se é um subconjunto aberto de então ou No primeiro caso, tem-se que é mensurável[ver nota 5]. No segundo caso, tem-se:

Segue da definição de -álgebra que é mensurável e, como é mensurável (por hipótese), também resulta que é mensurável. Isto significa que é sempre mensurável quando é um aberto. Portanto, é uma função mensurável.

Reciprocamente, se é uma função mensurável. Tomando o aberto igual ao intervalo tem-se [ver nota 6]. Então é mensurável pois, por hipótese, a função característica de é mensurável.

Proposição 1.19

Dado um espaço mensurável e uma função mensurável existe uma função mensurável tal que para todo e

Demonstração
Esta demonstração é deixada a cargo do leitor. Sinta-se livre para melhorar a qualidade deste texto, incluindo-a neste módulo.

A seguir, é demonstrado um a interseção de uma família de -álgebras é ainda uma -álgebra.

Lema 1.20

Se é um conjunto não-vazio e é uma família[ver nota 7] de -álgebras sobre então é uma -álgebra sobre

Prova
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Proposição 1.21

Se é um conjunto não-vazio e é um de seus subconjuntos, então existe a menor -álgebra sobre que contém

Demonstração
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Definição 1.22

A menor -álgebra sobre que contém é chamada de -álgebra gerada por e denotada por


Exercícios[editar | editar código-fonte]

Exercício

Demonstre que se obtém uma definição de -álgebra equivalente a que foi dada se for trocada a propriedade 3 por 3', ou seja, se for exigido que a interseção enumerável de mensuráveis seja mensurável (em vez da união enumerável).

Resolução
Basta observar que, pelas leis de De Morgan, e também De fato, supondo que para cada tem-se pela propriedade 2 que para cada Então, se for assumida a propriedade 3' como parte da definição, resulta

Usando a propriedade 2 novamente tem-se

De forma completamente análoga, assumindo 3' como parte da definição, segue a propriedade 3.

Exercício

Mostre que a interseção finita e a união finita são mensuráveis sempre que os conjuntos forem mensuráveis.

Resolução
Basta definir a sequência como:

Então, uma vez que é mensurável, se os conjuntos são mensuráveis, resulta que todos os termos da sequência são mensuráveis.

Então, a propriedade 3 pode ser aplicada para se concluir que é mensurável.

Do mesmo modo, a propriedade 3' implica que é mensurável.

Exercício

Dado um conjunto arbitrário, verifique se os seguintes conjuntos são -álgebras sobre :

Resolução
1. Considere Há três propriedades que devem ser verificadas por para que ele seja uma -álgebra sobre :
  1. Primeiramente, pela própria definição, tem-se
  2. Suponha-se que Pela definição de segue que ou No primeiro caso, A outra possibilidade é que Portanto, tem-se sempre quando
  3. Finalmente, seja é uma sequência em Pela definição de para cada tem-se ou Se for sempre o caso que então Caso contrário, existe algum índice de modo que Neste caso,

Portanto, é uma -álgebra.

2. Deixado a cargo do leitor.

Exercício

Se é um conjunto infinito, é verdade que é uma -álgebra sobre ?

Resolução
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Exercício

Seja é um conjunto arbitrário e Demonstre que é uma -álgebra sobre e que

Resolução
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Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Ver propriedades 1 e 2 da Definição 1.1
  2. Como a propriedade 2 da Definição 1.1 garante que e, pela observação anterior, a interseção desta diferença com está em
  3. 3,0 3,1 3,2 3,3 3,4 A rigor, um espaço topológico é um par onde é uma topologia para o conjunto Para mais detalhes, consulte um dos livros citados nas referências do wikilivro Topologia, por exemplo General topology, de John L. Kelley, página 37.
  4. 4,0 4,1 4,2 4,3 4,4 4,5 4,6 Note que está sendo cometido um abuso de linguagem: a rigor, um espaço mensurável é na verdade um par e não apenas um conjunto No entanto, conforme foi mencionado na Observação 1.9, é costume não explicitar a -álgebra principalmente quando esta puder ser deduzida pelo contexto.
  5. Na Obs. 1.3 se justifica porque o conjunto vazio é mensurável.
  6. Note que qualquer outro conjunto aberto com esta propriedade também serve.
  7. Está sendo suposto que a família é não-vazia, ou seja, que o seu conjunto de índices não é vazio.

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. Conforme introdução do livro "The Elements of Integration and Lebesgue Measure", escrito por Bartle. Ver também a seção History, do artigo sobre integrais na Wikipédia inglesa.
  2. Ver na Wikiversidade a ementa da disciplina "Introdução ao Cálculo".
  3. Este teorema da análise é explicado em detalhes no capítulo sobre Convergência uniforme do wikilivro de Análise real.
  4. Lebesgue (1902)
  5. Para maiores detalhes, pode ser consultado o wikilivro intitulado "Topologia", ou alguma de suas referências.
  6. Alguns autores definem a mensurabilidade de funções a partir de outra propriedade (que será apresentada na Proposição 2.29). Veja, por exemplo, Isnard (2007), pág. 57.
  7. Isnard (2007) apresenta uma versão deste resultado, com e sendo espaços vetoriais normados, no exercício 13 da página 109.
  8. 8,0 8,1 8,2 Conforme K. D. Joshi em seu livro Introduction to General Topology, a topologia usual de é aquela induzida pela métrica euclidiana.